Papo de Domingo: ‘Eu ouvia dos policiais: releva, ele está nervoso’
A terapeuta e escritora Cecília Tannuri usou um exemplo de violência dentro da sua casa para se fortalecer e ajudar outras mulheres
A terapeuta e escritora Cecília Tannuri usou um exemplo de violência dentro da sua casa para se fortalecer e ajudar outras mulheres e também outras famílias. Ela esteve em Santos para divulgar a campanha “Violência sem Rastros” e os sete livros que já escreveu.
Diário – O que levou você a criar a campanha “Violência Sem Rastros”? Você usou um exemplo pessoal?
Cecília – Estou nesse momento. Depois de 20 anos, eu consigo falar um pouco sem emoção. Eu também passei por isso, eu era muito jovem. Aos 18 anos me casei, entrei nessa história, mas achei que era tudo normal. Não olha aqui, não põe isso, tira aquilo, não vai estudar. Como ele era um pouco mais velho, eu sou de uma família síria, com algumas tradições, ele tinha lá os poderes dele de presidente de uma multinacional. Nessa história toda, eu tive filhos. Quando eu me vi, eu já me sentia bem, só chorava. Não entendi o porquê, nada. Isso foi piorando à medida que os filhos foram crescendo.
Diário – Mas o seu casamento seguiu um trâmite normal ou foi você vai ter que casar com ele?
Cecília – Não, foi um trâmite normal. Eu conheci, namorei. Morei fora muitos anos. em Nova York, Kentuck, devido ao trabalho dele. Eu sempre fui me afastando da minha família, que
é um padrão. Fui ficando mais dependente emocionalmente, financeiramente, todos sentidos, socialmente. Aí, não eram mais meus amigos, minha família, era ele, meu marido, sou esposa de, sou mãe de, e eu passei a ficar sem identidade.
Diário – Você virou invisível?
Cecília – Totalmente. Isso coloquei em um dos meus livros.
Diário – E a separação como foi?
Cecília – Ela aconteceu com 22 anos de casamento, eu já tinha uma filha de 18 e um de nove. Isso ficou tudo muito confuso na minha cabeça. Minha filha me dizia que isso não era normal que eu podia fazer tudo que eu quisesse, pois eles estavam criados. Fui tentando fazer e ele (ex-marido) começou a ficar mais obsessivo, obsessivo. Aí, a violência verbal extrapolou. Isso era comum, como é para maioria. Quando passou a ser “você não vai fazer”, “você não tal coisa”, me perseguiu na escola. Até que um dia aconteceu uma violência muito séria, que prefiro não dar detalhes, onde morávamos, em Campinas, e saí de casa com meus filhos. Eu me fortaleci no SOS Mulher, por cinco anos. Mas não conseguia sair de lá, pois é emocional, não tinha a ver com dinheiro. Meu pai já tinha falecido. Eu não tinha o apoio da minha mãe, pois para trabalhar a violência é preciso chamar a família toda.
Diário – Como era a relação dos seus pais. Era machista?
Cecília – Total machista, super machista. Ele só teve duas filhas. Para mim era normal. O que eu via ali? uma mulher totalmente submissa. De repente, eu não acordei por isso. Minha mãe não era independente, mas ela gostava daquele papel. Aí, que está a diferença. Meus tios, nessa família árabe controladora, eu achava normal. Elas faziam todo os dias o jantar, o almoço, colocavam o café. Comigo começou aquele o que você fez hoje? Não, não fez isso. Repete. Era um massacre mental.
Diário – Isso se acentuava mais pelo diferença de idade de vocês?
Cecília – Não, ela era só seis anos mais velho. O “poder” ele acha que tinha muito, ele não pensava que era o presidente da empresa que trabalhava, mas o dono. Ao mesmo tempo, eu era um bebê nas mãos dele. Não colocava os filhos em primeiro lugar, me colocava. Isso faz parte do comportamento do agressor. Não muda. Ele foca aquilo e lá que ele vai. Busquei psiquiatra, fui ao SOS e ia me fortalecendo. Eu queria saber das coisas.
Diário – Quando você começou a se especializar?
Cecília – Eu me separei, no ápice da violência.
Diário – A violência passou para cima dos seus filhos?
Cecília – Isso me gela quando eu falo, pois lembro de tudo.
Diário – SE a violência tivesse ficado só em cima de você, acha que seria diferente?
Cecília – Sim, eu poderia ter ficado em casa, como a maioria fica. Eu ouvia dos policiais, releva, ele está nervoso, olha que home bom. Não falta nada para você. Ele pensava se ele estava enxergando algo, e não estava mesmo. Percebi que não tem profissional para receber a mulher violentada. A delegada até lhe recebe e faz o BO. Fica dizendo” ele falou que vai te matar?”. Aí, eu entro na história, por isso que atendo. Espera, não funciona assim. “Aqui tem que ser claro, ou vai matar ou não vai”. Eu disse, ele já matou. O emocional dela já foi embora, por isso, ela desenvolve as doenças psicossomáticas. É difícil mudar o padrão social. Por isso, fazer despertar com a campanha. Quando eu me separei, tive que trabalhar. Apesar de tudo, hoje não tenho nada daquilo que construímos juntos. Eu larguei tudo, não assinei nada. Virei às costas. Fui chamada para duas audiências e disse que para mim tanto faz. Mas a “senhora tem o direito”. Não, não tenho. Eu sou livre e realmente não quero. Meus pais faleceram, minha irmã faleceu. Fiquei sozinha, mas com meus filhos, meus netos. Aí, comecei a escrever sobre adolescentes, autoajuda, violência e alguns casos disso. Até então, eu não tinha feito um link com a minha violência, eu não queria fazer. Um dia me deu um start na cidade de Barretos, onde nós dois nascemos, e comecei a escrever para um jornal. Dentre os vários casos, temas. Um deles foi o meu: “Violência Sem Rastros”, que é o nome da campanha.
Diário – Explique mais um pouco…
Cecília – “Violência Sem Rastro”, porque ela não deixa marca, física, mas ela te destrói. Eu fiz o texto e aquilo foi ganhando corpo. As pessoas ligavam querendo saber mais. Apareceram algumas feiras grandes e eu levava meus livros. Eu resolvi fazer um livro totalmente sobre violência que o “O Resgate de uma vida”, tanto que ele é gratuito. A campanha também é de graça. Por isso, que reforço a importância do 180, pois eu não consigo atender mais. Até para direcionar para os serviços de atendimento, já que trabalho com muita gente no consultório. Por isso, eu expandi. Fui aumentando a campanha. Ela foi premiada oito vezes em Goiânia.
Diário – Você lida com todos os tipos de violência? Existe uma solução para diminuir algo que só cresce no Brasil? Como mudar isso?
Cecília – Saí dos espaços grandes, teatros. Fui para as escolas. Foi onde comecei a campanha. Depois de participar em grandes feiras em Brasília, Goiânia, tudo premiado. Pensei por que ficar dentro de um quadrado, se eles não passam isso adiante. A criança precisa ter essa informação, mas como? Comecei a procurar os secretários de Educação. Eles falavam que era a ideia, o canal certo. Comecei com o livro mais básico, depois autoajuda e chegava na violência.
Diário – Como você chega ao coração daquela criança que, às vezes, é violentada e violenta, por meio das suas informações?
Cecília – Eu começo a falar da violência como um todo, na área social, numa linguagem simples, onde a criança pode estar inserida. Se ela estiver na oitava série é uma fala, no colegial, é outra. Começo bem pequenininho, no miolo, e aquilo vai ampliando, ampliando dentro dos colégios. Levo os banners, que ficam, em média, 40 a 60 dias lá. Todo dia alguém passa e lê uma frase e depois me ligam. As crianças me procuram.
Diário – Como é a abordagem dos jovens mais velhos, que têm ou tiveram mais contato com casos de violência?
Cecília – Dentro da Organização Mundial da Saúde, na Lei Maria da Penha, ela deu nome para lei, mas ela não foi ouvida e teve que denunciar o Brasil. Ela sempre diz que “eu estou tetraplégica e ele está solto!”. A lei não funciona. O que são 300 metros de distância. Os mais velhos são os mais difíceis. Eu vim para Santos, pois tive o apoio da Diretriz Feiras e Eventos. Agora, tenho feito nas praças, não mais em quadrados fechados. Por quê? Porque vejo a rejeição clara. Os maridos não deixam as mulheres passarem no meio de maneira alguma. Já os estudantes vão em peso. Tive que fazer, 10 mil, 15 mil, 20 mil livros para doar. Os meninos levam e falam “está vendo seu jeito de machão?, vai, continua assim. Você vai acabar sozinho”. Aí, a discussão é lá. A ideia da conscientização para que eles tenham um debate, dentro daquele núcleo, seja universitário, escolar. Isso é importante. Não sei o resultado final, não vamos saber nunca. Agora, de dez mulheres, três tentam sair e uma sai. Vejo que a violência aumentou muito.
Diário – A sua recompensa é quando você tira alguém da violência ou da situação que ela vive?
Cecília – Já tirei várias mulheres. Tem, por exemplo, uma de 60 e poucos anos que vivia nessa violência que vivi. Ela não aguenta mais, ela me procura por isso. Ela está deprimida e doente. Ela chega no meu consultório e eu vou ouvindo a história até chegar ao marido. Ela conta tudo e vamos ampliando e ela diz que não quer mais isso.
Diário – Você atua apenas com violência doméstica?
Cecília – Mas se tiver alguém que me procure, principalmente, em Minas, porque o filho é drogado, que é o revoltado. Entro com tudo na história. Já fui até em cracolândia. Agora, ele precisa querer ajuda, pois aquela família está destruída, mãe, pai, irmãos, sobrinhos, ele próprio e mais um pouco do que se pode imaginar. Agora, apesar de ser pessoas feitas, já tirei dois trombadinhas do crime. Um dá aula na universidade e a outra uma gerente de uma grande rede de lojas. Os dois estavam na cracolândia. Eles quiseram e a primeira coisa é querer.
Diário – Como reforça a conscientização das pessoas?
Cecília – Deixo os livros, não abordo ninguém, pois não existe abordar alguém. Ela vem quietinha, pega um livro, dá uma olhada. Pergunta se pode pegar um cartão. Eu sei que em algum dia ela vai me procurar. Quando vou fazer uma palestra, eu coloco meus banners e o livros perto de onde as pessoas bebem água. Ninguém entende, porque faço isso. Ali é um lugar que ninguém vê e quando você vai lá não tem mais cartão, panfleto, livro, nada. Sumiu tudo.
Diário – Como é trabalhar com tantas famílias desestruturadas, muitas vezes pela miséria?
Cecília – É importante conscientizar os filhos que existe alguma coisa errada naquela relacionamento. O que eu ouço na hora de assinar um livro. “É para minha mãe, mas meu pai não pode saber”. Eu digo pode falar alto, só tem eu e você aqui. O padrão já está nela e o medo também. Ela quer sair da violência e tirar a mãe, o pai, o irmão também. Ela acha a busca uma ajuda. Se nós conscientizarmos mais cedo, menos violentados nós teremos.
Diário – Você tem algum tipo de confronto com a questão religiosa? O padrão é manter sempre um casamento mesmo que ele seja ruim.
Cecília – Muito pouco. Mas estou começando escrever sobre isso. Agora convence o outro que você está infeliz, que para não cair o padrão dela ou dele, onde vai a saúde dela? começa uma indagação de quem realmente tem poder que são as crenças, os templos, enfim, toda essa estrutura que as pessoas precisam. Você tem que se comportam bem, mesmo que estiver tudo ruído, preciso aparentar bem para a sociedade. Eu vou começar uma outra briga, bem maior.
Diário – Você acha que esse Deus tem muito coisa para se preocupar?
Cecília – É um Deus para todo mundo. É muito Deus, não é? Vou entrar nessa questão da religião. Fui para Israel para entender, não o lado do Jesus Cristo, quero entender porque lá só 1% das pessoas acreditam em Jesus. Por quê? O restante não. Estou escrevendo um livro chamado “Em nome de Cristo”. É a minha visão. Quero entender por que as igrejas acolhem essas pessoas e já sei porque, mas preciso aprofundar, mas acolhem o casal para que eles voltem a ser felizes para sempre. Para mim não existe isso.
Diário – O que você acha desse discurso “eu sou a favor da família” muito comum nesses dias? Hipócrita?
Cecília – O que é uma família? Pai, mãe e filhos? Dois homens? Duas mulheres? Não sei o que é .Quem introduziu família? No mundo é um padrão. Quem colocou esse padrão? você precisa questionar. Nem tudo que é falado você tem que concordar. Esse discurso é hipócrita. A família é instituída, pois traz presente a estrutura. Quando alguém vê uma “Família Doriana”, a mulher pensa “queria tanto essa família para mim”. Mas ela não existe. Nós estamos dentro de um contexto violento. Você pôs o pé em qualquer lugar e tem que toda hora ficar se desviando de alguém. O outro está falando com segunda, terceira intenção. É o reflexo do mundo. Esse é o fio da cidadania sem máscara. Isso é hipócrita, sujo, acho um absurdo.
Diário – Como avalia o caminho que o País está tomando, dividido politicamente, um discurso voltado para ódio, onde a mulher tem que ganhar menos do que o homem; família só de homem com mulher; a submissão da mulher, pois só assim será um país perfeito, correto?
Cecília – É hipócrita você colocar dentro e para a família toda essa responsabilidade. A família é estrutura de quê? Da violência? do desrespeito? Ela é tudo menos estrutura. Essa família já gera violência. Acho que um candidato tem que falar do trabalho dele, não da família. Coisas absurdas que são faladas, padrões repetidos de uma violência sem fim, de dentro das igrejas, Das crenças, da mitologia, do passado.
Diário – É um discurso que se propaga?
Cecília – Se fizermos pessoas mais fortes, seja quem for, homem, mulher, homossexual, criança, se tiver consciência vai fazer parte daquele país de cara limpa. O crescimento é individual, não é coletivo. Podemos falar coletivamente e divulgar a conscientização.
Diário – No seu trabalho, quantas famílias ou mulheres você conseguiu “equilibrar” ou transformá-las em algo melhor?
Cecília – Tirar dessa violência principal, ela sendo o alvo, de cada dez, nove.
Diário – Fale um pouco sobre o 180
Cecília – É um telefone de âmbito nacional que foi criado junto com a Lei Maria da Penha, que é muito bacana no papel, mas precisava de mais força. Pessoas precisam ler sobre isso e reivindicar seus direitos.
Diário – E essa questão da mulher agredida que procura assistência e acaba voltando para o lado do agressor?
Cecília – Ela acaba voltando para o “ninho”. São as repetições. São profissionais, infelizmente, que não estão prontos atendê-las. A própria mulher discrimina a outra. Eu digo nas palestras que as mulheres só apanham de segunda a sexta, no horário comercial. O 180 você não precisa se identificar e minha situação é essa. A atendente mostra os passos que a vítima precisa dar. Eu também faço isso e entrego para a lei. O telefone funciona e se não funcionar temos que denunciar para chegar até Brasília.
Diário – O que você diz para uma mulher que está hoje em uma situação de violência ou aquela que apanhou do companheiro e voltou para ele?
Cecília – Ela se faça inteira e se dê valor, porque ela não é essa pobre coitada que alguém olha de fora e diz que ele é bom, e ela tem muita sorte em tê-lo. Não é isso. Eu estou bem e consigo me manter lúcida e consciente. Denuncie, não faça esse papel de vítima. Ela só está reforçando o padrão. A violência é inadmissível em qualquer lugar, seja ele social, familiar e no País. Precisamos mudar essa história.
A violência deixou de ser uma marca apenas das pessoas miseráveis. Ela está em todas as classes sociais e crescendo cada vez mais.
As pessoas que eu atendo são da classe AAA. Você não tem noção aonde a violência chega. Na campanha, atendo pessoas pobres e encaminho os casos e fortaleço. Os mais ricos abafam tudo.
Diário – Hoje, você tem um local para atendimento?
Cecília – Atendo no Brasil todo. Moro em Campinas. Se houver um grupo interessado, por exemplo, atendo em Roraima.Vou viajando.
Fonte : https://www.diariodolitoral.com.br/cotidiano/papo-de-domingo-eu-ouvia-dos-policiais-releva-ele-esta-nervoso/117444/